domingo, 29 de novembro de 2009

Relógio biológico

Abro os olhos pela manhã e por vezes, não consigo mover-me. Você entende que sua alma precisa sair de você. Mas que por vezes você acorda sem dever. Assim, sem querer. Apenas não se mexe e o seu redor parece tão imaterial, como se de fato o fosse. Hoje eu simplesmente levantei e fechei o quarto por mero reflexo, como que por curiosidade, acuamento. Uma primeira chance de me proteger. E eu a tive atrás da porta, imóvel e gélida. Indecisa. E eu não podia fazer, sentir. Não podia. Por ser tudo tão vazio, pela primeira vez entendi meus 55 kilos em 1,70 de altura. Ela é dez vezes mais pesada. Mais forte do que se verá no meu caixão. Eu entendi a textura da paredes, entendi o frio dos lençóis, mas não, não senti um só calor, nem da minha cama, nem do poema de Dickinson naquele livro aberto sobre ela. E eu a ouvia atrás da porta, volátil. Cada tic do relógio era apenas a deixa do tac, esse minuto, uma repetição do sessenta segundos anteriores. Meu estômago vazio, como nunca havia estado, de um estranho vácuo. A ser preenchido pela mais saborosa massa ou pela mais insossa pedra, sem perdas nem danos. Percebi que poderia estar perdendo os entes mais queridos das mais violentas e desesperadoras formas e podia ser o culpado por todas elas. Repetiria o ato repetidas vezes sem perdas nem danos. Sem remorsos. Mas tinha calafrios ao imágina-la atrás da porta, estática e impassível. Quando cortei minha pele, houve dor, sim. A mais aguda e sincera dor, o mais vermelho e primitivo sangue, ainda assim, cortaria quantas vezes achasse conveniente. Já não entendo o porque de ter fechado os olhos, mas só quando os abri, senti os ferimentos, com toda a culpa e vergonha. Com todo o calor, como se aquele arrepio de sentí-la do lado de fora fosse algo de uma distante noite passada. Tive instintos e desespero ao ver todo aquele sangue derramado, a vontade de que aquilo nunca mais ocorresse, o medo e a curiosidade por aquela completa ausência de sensações, algo que só agora percebia. O torpor. Precisava de janelas abertas, algodão e álcool, esparadrapo e acima de tudo, o toque e calor, o cheiro de outro ser, outro corpo, outra alma.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Melissa, a manhã e o pôr do sol.

"Esse é o mau em se ter insônia, nunca se consegue dormir, mas nunca se está completamente acordado." Talvez possa-se dizer que o mundo passa como se emoldurado como um sonho. E em todo pôr do sol eu perco qualquer certeza quanto ao que eu devo estar fazendo, o que vou fazer e que horas são. Se decidi explodir o mundo com chiclete quando acordei, é sob esse céu de baunilha que eu desisto. E depois que eu subo no ônibus, eu sou só mais uma estatística sobre o transporte público. Pra falar a verdade, eu nem sei porque que eu estou falando com você.

Mantém a boca aberta e move a vista pelo asfalto da avenida.

Eu acho que finalmente surtei, sabe? Mas eu nunca surto de verdade. Me faltaram uma corda, uma arma, a coragem. Agora balance a cabeça afirmativamente. É, a coragem... Te sendo bem sincero eu nem entendo bem porque deveria ter coragem para fazer essas coisas. Porque a idéia de que eu posso me foder parece realmente distante.

Ela balança a cabeça. "É a vida, é assim mesmo."
Pois é, mas um dia eu ainda vou fazer alguma coisa. Toda manhã eu acordo cheio de idéia. Aponte para o horizonte por cima dos prédios. É isso daí que me faz esquecer. "Você deveria anotar." Ela diz, mas não é o que pensa. Fosse realmente falar, ela poderia parecer muito mais fora de si que aquele rapaz estranho. Estranho como não parecia só mais um louco de meio de rua. Olhe para ela. Eu não sei se sou só eu que sou assim, não. Talvez tenha mais gente que nem eu, e a gente só não transforma isso tudo aqui, eu não sei nem porque. Você também não sabe, claro, porque é igual a mim. "No fim nós somos todos iguais mesmo, né" ela fingia entender, mas ainda estranhava aquela última idéia. Observando discretamente, com o canto do olho, como que se atrevendo a correr um imenso risco, as calças não rasgadas, a camisa sem estampa que caía bem ao corpo magro, barba feita e ausência de cheiros fortes a desarmaram, como a uma defesa incompatível de xadrez. Apesar de seus tênis parecerem desgastados por puro descuido. Olhe os olhos dela. Você não sabe quem sou eu, sabe? Ela sorri, como quem não entende a piada. Naturalmente, exatamente da mesma forma como não sabe quem é você mesma. "Acho que ninguém sabe" recorre ao óbvio. Na verdade, muita gente sabe. Mas e então... quais eram os planos para hoje pela manhã. Sente-se. Aposto que pensou em terminar com ele, e que não foi a primeira vez. "Você está falando comigo?" Porque já parecia demais. Eu já passei por isso muitas vezes, eu aguentei firme, você também aguentará. Mas ele não irá. "A sua aguentou?" precisava tomar o controle, "ou seu, sei lá?". Claro que não, ninguém deveria ter de aguentar. Esse ônibus não chega, né. "E como foi que aconteceu?". Procure o ônibus. Acho que chega logo, devo ter pouco tempo. Escute: não estarei aqui amanhã, nem depois, nem nunca mais, mas saiba que nada vai mudar, simplesmente porque, desse jeito que você é, eu sou e outros foram, é apenas o mesmo papel para personagens diferentes. Opa, lá vem. Dê sinal. Sugiro que apenas relaxe, certo? Nossa vida, digo, a minha e a sua, não é tão ruim, há seus bons momentos, não nos colocaram na áfrica e nunca veremos uma grande guerra. Termine, o ônibus vai esperar. O que eu realmente precisava dizer é que, ao contrário do que ele vai te fazer pensar, o amor é, sim, uma coisa verdadeira, talvez a única. O resto é só vida real. Agora suba.

Ela sobe no ônibus seguinte e chora, olha pela janela aquele céu de baunilha e esquece. "Oi, amor" na próxima parada. Vestia uma saia limpa, mas amassada, com uma camiseta branca sem detalhes ou desenhos. Decidira comprar sandálias novas, promessa que demorou semanas a cumprir e esquecera o que aconteceu, mas se deixou levar pelas manhã seguintes, decidindo e esquecendo. Anoitecer após amanhecer. Ao longo de todas as translações seguintes.