quarta-feira, 30 de junho de 2010

Olhos

Eu sou daquele tipo mal educado que encara as pessoas. Mas eu não faço por mal, eu só não consigo evitar porque eu escreveria um Ulisses para cada olhar que cruza o meu durante cada dia de aventura que é sair de casa pra viver nesse mundo doido. É que eu preciso saber de cada vida.
Mas eu estaria mentindo se dissesse que me lembro de cada pessoa pelos olhos.
Da Amanda, por exemplo, eu lembro o topo da cabeça e o começo das costas, da Raquel, o movimento dos cabelos, da minha mãe a sobrancelha esquerda e do Daniel a semelhança entre ele e aquele retrato do avô que ele tem na sala de casa.
Do Bruno eu lembro os olhos,
ou os óculos.
Mas é porque o Bruno tem aquele olhar de quem vai te pegar pela mão e te levar pra viver tudo que há de mais divertido nessa vida, que vai te cuidar e te deixar e te comer vivo e viver com você e todo mundo mais dentro dele, tem um mundo dentro do Bruno. O Bruno tem olhar de gente que está viva, me dá um medo e uma vontade. Gente assim, porque deve existir mais gente assim, parece que descobriu uma coisa óbvia sobre tudo, ou já nasceu sabendo, mas não sabem que os outros não sabem. Acho que depois de Adão e Eva, Deus fez os antepassados do Bruno mas eles fugiram do Éden por livre e espontânea vontade, e agora existem essas gentes entre nós. Acho isso uma tremenda sacanagem.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Fragilidades

Imaginou como seria brincar de esconde-esconde sozinha no apartamento. Foi assim que arranjou motivo para encolher-se naquele único canto do quarto que nunca teve motivo para ir. Só seu agora e deixou seu escrito na parede, em letra pequena, ilegível e não original: I was here, and only me. Assim, sem consciência da metafísica moderna, reafirmou, only me. E para manter sua palavra escrita, decidiu montar virgília eterna àquele ínfimo pedaço de parede, deixando-o apenas, e com muito temor e pesar, no dia do próprio funeral. Tratava-se de um fantasma moderno, para a eternidade escolhera uma camiseta branca com uma estampa do Velvet Underground, uma saia jeans, sandálias rasteiras e uma fita vermelha no cabelo preto. Só aparecia em fotografias de aniversário e sempre desligava o forno quando um bolo ia queimar, sempre sabotando qualquer projeto de pintura daquele seu ponto na parede, onde ela, e apenas ela havia estado. Sessenta e oito anos se passaram e orgulhosamente seu escrito constituiu uma pequena mancha ignorada no canto do quarto.Naquele dia, durante a estadia de um jovem escritor de cyber-contos vintage, a fantasma deparou-se com as palavras deixadas na tela de um computador:

"Eu posso dividir meu segredo com você se disser em qual das minhas mãos ele está.
Qual dessas duas mãos sempre tão cheias de dedos, que dedilham fios de cabelo e fios de navalha.
Que sangram sempre o mesmo sangue e tocam sempre os mesmos acordes.
O mesmo arpejo que resume a vida"

E ficou perdida por entre palavras e significados, segredos próprios e alheios, o absurdo, como se pode brincar assim com aquilo que podia haver de mais frágil e perigoso dentro de um coração? Por um instante, pode sentir-se tomar formas de revolta, angústia e indignação. Por não ter mais corpo, se esculpia de tudo o que sentia, tinha agora o desenho do abraço entre agonia e incerteza. Pela primeira vez em muito tempo, esqueceu-se do seu posto de guarda, seu lugar cultivado naquela existência. E se fosse tarde? Tropeçou pelo ar até o quarto e o jovem rapaz tocava sua mancha, tarde demais, nada a fazer, era o fim. Ele acariciou a parede e olhou ao redor e por segundos eternamente turvos, pareceu fitá-la. Levantou-se. O que faria? O que ele faria? E depois disso o que ela faria? O que fazer? O que esperar? Tintas, ele tinha tintas, ele iria pintar sua parede, seu espaço, sua lembrança, amarelo sobre seus sentimentos e tudo teria um fim, ela teria que descansar em paz afinal, já podia sentir-se afogar dentro da lata de sem cheiro e de secagem rápida, acabaria assim então.Com o pincel, o jovem escritor desenhou com cuidado um pequeno abrigo circular para a pequena mancha e suas miúdas letras, depois um círculo maior, ao redor de tudo isso. Boquiaberta, ela assistia, como quem assiste a própria morte (pela segunda vez). O círculo maior foi contornado com uma fina linha branca na parede verde, e preenchido de laranja, mantendo sempre a salvo a pequena mancha dentro de suas fronteiras arredondadas. Eram os requintes de crueldade. E com o pincel mais fino, o jovem escreveu com olhos concentrados ao redor do círculo menor:

...Been everywhere, but there.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Santa, santa, santa.

Logo de manhã o sol é uma imensa faixa clara, quente e agressiva através dos olhos e das lentes UVA e UVB, reflexos e vultos reluzentes de bocas e pernas e tênis e rodas e fios de cabelo e telefone, buracos, tropeços, monstros e outdoors amassados de lingeries. Pedaços de manhã pela avenida. Não é o que se vê, é o que se ouve nos motores dos ônibus e dos carros e no assar das peles e do asfalto na margem da avenida. Tanta, tanta, tanta, tanta, tanta gente e nenhuma voz humana. Se algo corta de repente seu ouvido antes que desmaie: Um celular, e tudo volta a mais barulhenta e angustiante normalidade da margem da vida urbana. Correu alguém, menina, all-stars, mochila adidas pesada e gasta, calça jeans colada e camiseta de farda colegial. Em seu quarto ela joga os livros como se livrasse de uma imensa pedra que quase racha o azulejo do apartamento, liga o ventilador e deita na cama para tornar-se o que há de mais culpado e invejado dentre as almas operadoras de telemarketing e representantes de vendas. Santificada, fecha os olhos e os ouvidos com um lençol, libertando-se de todo e qualquer mal, santa maria dessa manhã, a ti devemos a esperança de voltarmos para nossas famílias, sãos, salvos e exaustos. Façamos hoje uma oração antes que o sol e o motor derreta nossa fé e amemos essa imagem quando o ônibus nos levar dessa vida.

Vida de bolso

Quando saiu de casa tudo que queria era um cachorro quente, e a TV mandava nunca mais jantar. Não tinha desses dias que se passam em fotografias do pôr do sol e certamente não duraria mais de um mês ouvindo Tom, Jobim ou Zé.
Saiu de frente a um apartamento, um emprego, um filho, um casamento e num domingo, dessas horas tão mortais, foi se hospitalizar.

"...e então minha melhor amiga vem a ser a máquina de hemodiálise. E dentre tantas vidas que se lê, nem sei nem quando eu vou voltar, mas entre raios e estímulos tão vitais, eu peço um disco voador... e eu não desço mais."

Você

Você me viu passando e nada fez, você, essa vergonha e inatitude. Por causa de você ele voltou para casa e escreveu e no dia seguinte nada mais daquilo fazia nenhum sentido porque nada nunca faz. Você, a segunda pessoa do meu dia e da minha língua, minha realidade, que descende de tu e se perde entre eles. Tocou meus dedos por acidente naquele dia e nunca mais, mas aqui está. E é tarde demais. Você agora é outro, por isso sou outro e assim continuamos sob sucessivas transmutações como se nos tornássemos líquido e recipiente, barro quente e mão.

Entenda.

Você acordou naquele dia como acorda todos os dias mas o dia só começou algum tempo depois. Você olhou o espelho e viu ele, viu eu. Você vestiu-se de acordo e saiu. No caminho esbarrou comigo, vestido de você e isso foi apenas uma vez, pois meu eu e seu eu são raros de se ver. Eu ainda esbarraria com muitos de você. Depois de mim um primeiro ele também vestido de você, falando com a sua voz:
- Quem é você?

Quem é você afinal? Quem sou eu? Há muito tempo não me vejo e duvido se existo.

- Você sou eu...

Quem é ele? Ah, ele. Ele é tudo que há de pior e de mais belo, é tudo que quisermos que seja.

- Mas quando olho, o que vejo sou eu.

A verdadeira culpa

O eu-lírico levantou para beber água na cozinha
e ficou lá de papo com a Creuza
enquanto isso a caneta foi, e contou tudo.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Uma hora, uma madrugada.

Woooff. Está frio aqui.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Presente feito em casa

- Vai quebrar, vai quebrar.
quebrou.
- Eu avisei, não avisei?
Tinha que ser delicado e tinha que ter os dedos leves, levinhos, levíssimos.
Mas enquanto tentava entender que -íssimos não fazem parte da poética dos barbantes, ele errava, rasgava e tantava de novo.
- Olha só, cuidado... cuidado. Não!
Outro.
Enquanto isso se perdiam os panos, as linhas e os barbantes. Além do sentido de carinho da coisa