segunda-feira, 19 de julho de 2010

Da vida das coisas

O fio se estende no ar sem um ponto de chegada. Ou de partida, não se sabe ao certo. Como as escadas que levam ao nada nos cantinhos das praças recém construídas.
E durante aquele instante o fio saía de um poste sem chegar a outro, sem chegar ao chão nem a nada que o mantivesse ali, suspenso feito braço e mão e dedo de moça, apontando o vazio azul do céu de meio dia. Por um instante, um breve instante. E manteve a pose, como criança que espera a reação à arte, como penteado novo, num orgulho que apenas espera, sem pedir, o elogio.

Por um instante, um breve instante.

E veio o menino e catou a bola fujona.
E passou o moço com a gravidade nos olhos e o olhar no chão. As pessoas cruzam com o amor, mas nem sempre o cumprimentam.
E passaram os pássaros num bater cansado de asas.
E passou a brisa atrasada.
Passou o silêncio.
- Desista. Gritou a folha seca e amarela do chão. – Eu voei daquela árvore e ninguém notou.
- Desista. Suspirou a pedra. – Do tempo eu tanto sei e ninguém, nunca, perguntou.

- Desista. Sussurrou o céu.

E o fio deitou no chão como o sorriso desacompanhado que se fecha.

E o instante, num breve instante, se perdeu

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Pontes quebradas

Lá depois daquele sino tem um jardim de flores amarelas, amor. E quando ele toca lento, elas balançam, como se fechassem os olhos, as pétalas e simplesmente fossem sino e vento. Lá, nesse jardim, se a gente subir pelos caminhos, bem ao centro tem uma árvore, folhas vermelhas de pôr do sol pra sempre. Elas nunca caem, as flores nunca murcham, nunca nem anoitece, lá. É tudo tão bonito, amor. Sabe que combina com aquele teu vestido, o jardim? É, aquele amarelo que eu gosto em dia de sol. Quando bate o vento. Nem sei se já te falei. Do vestido, ou da verdade sobre os teus olhos, do toque das tuas pernas. Ele combina, amor. O vestido. Vocês combinam: meu amor, o vestido, o jardim. Eu te imagino tanto lá. Te ponho no mesmo cenário e nem preciso misturar cores, tons,trocar pincéis. Você está lá, sob a árvore, por entre as flores, em par com o vento. Te ponho numa moldura, mas parece que teu vestido e teus cabelos nunca param de falar com a brisa. É tudo tão lindo, amor. E sempre que o sino toca, você está lá. Tudo tão constante, condizente com teus tons de crepúsculo.

Mas esse som me deixa olhos pesados sempre que te leva embora, porque lá tudo te faz sentido, como o mosaico do teu retrato.

Eu tentei entrelaçar o preto dos teus cabelos com o escuro do meu céu. Ele insiste em amanhecer claro. E minhas estrelas e tulipas não reparam no teu vestido. Nem meu sol pálido te reflete. Eu tentei. Mas os retalhos do pierrot não são coloridos nem se podem colorir. Meu retrato é tão sem foco, sem forma. Minhas peças simplesmente não se encaixam. Mas o que me entristece é o meu jardim, as tulipas brancas, o luar, nada combina com teu vestido amarelo, com as tuas flores.

Lá depois daquele sino tem um jardim. Não te levo lá, não.Que tenho minhas vaidades, minhas promessas. Mas sempre espero, amor, com tristeza, o pôr do sol te levar.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

"Não sou eu, eu estou fingindo"

Me é estranha essa sensação de valha-me deus pela manhã, essa impressão de tá tudo errado, vontade de puta que pariu. Um permanente frio na espinha, nos olhares e nos falares, talvez até nos sentires. Não sei. Não sei porque não olho e se não olho não vejo, não paro. Tenho as próximas dez, oito horas até voltar pra cama. Chove lá fora, aqui dentro eu tento aquecer minhas costas por causa do frio, da febre, do medo. Já nem sei mais quantas vezes me joguei na cama, caminhei à sala, abri a geladeira ou desliguei a TV. Já fui ao telefone algumas vezes, sentei, olhei, disquei e desisti. Já olhei o número deles, pensei no dela, nela. Penso muito nela, bem e mal, mais mal, é verdade, eu tenho esses problemas. Só hoje ela já me traiu com três, de várias formas, em várias situações, das disconfianças à minha imaginação e à minha paranóia. Eu me entristeço e me entrego. Eu devia ligar, mas posso ser chato.

Releio
coisas. Tudo é sempre novidade, embora cada frase e cada assunto traga em si um cansaso de deja vu e, muito embora haja isso tudo ainda não lido, ainda passeio mesmo por essas páginas já vistas, revistas, romances, cartas, Woolf's, Mann's, Sartre's...

Há sempre música na minha solidão, talvez por isso ela pareça menos só, talvez até explique por momentos o frio na minha espinha. Porque quando imagino mundos no meu teto branco, há sempre uma voz a me invadir e me tirar das tragédias que eu mesmo criei. Ela hoje já me traiu com quatro. Eu vi no meu teto. Branco. Mas quando seus suspiros se misturam com palavras de Marshall, Harvey, Curtis, Calcanhoto, tudo parece perder o sentido. A música é o caos que cria em nós. De acorde em momento e em emoção eu atravesso muito da minha solidão dançando como ninguém poderia ver, antes de ligar a tevê.

"oh, come on child, in a crossbones style"

Há muito o que ler na minha estante, muito o que lavar na minha pia, muito o que varrer dos meus cantos e há até o que curar no meu corpo, mas há um mundo lá fora por dentro da Televisão.

Não, não é aqui que eu escrevo, também há muito o que escrever, mas tenho tanta música, tanta palavra, tanta tragédia a imaginar. Eu ainda tenho alguns minutos de solidão. Para escrever me basta tinta e papel. Para ficar só me exige muita fuga da solidão. Não, não é aqui que eu escrevo. Porque a porta abriu. Porque o mundo entrou me contando de violência, realidade, de absurdas tragédias que eu não conseguiria imaginar. Agora não sou eu, estou apenas fingindo, porque ainda tenho em meus cabelos uns brilhos de sonho a serem enxaguados, porque meus ouvidos ainda pedem pela música e meus olhos que apaguem a luz. Mas o dia acabou, é preciso viver por ao menos uns trinta e dois minutos e esperar tudo parar, da música, pelas tragédias até a realidade, tudo parar. Agora, pela janela eu passeio da luz estática do poste na avenida à nuvem antártica da nuvem de chuva anunciada, eu tenho cá minhas antenas de estimação apontando tensas contra o peso escuro do céu e minhas árvores de inspiração, a música não é mais do que o que trago na memória e o que escrevo não é mais do que a lembrança de uma outra solidão.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Primeiros trinta segundos

"Canetas e livros e comida com meus all-star sujos no chão, pois eu não passo de mais uma amálgama numa lata de sardinha, da classe média à periferia, todo dia". Ela penteava os cabelos pensando em escovar os dentes e escovava se perguntando se era como a TV tinha ensinado. Se os cabelos já estivessem o mais possivelmente à moda de Hitler, ela podia abandonar o apartamento. "se ele pegasse fogo eu perderia... as pessoas sentiriam pena de mim, a dona Dolores... eu iria embora pra longe, talvez fosse para onde coisas acontecem, para onde o mundo já me transformasse no que eu quero ser, sem bienais nunca mais, sem esperar por uma peça, ler sinopses, sem downloads, sem alternativas. Eu saio e não tenho opção se não fazer o que eu gosto, meu próprio mundo stalinista, e se eu quisesse assistir a um blockbuster, me preocuparia em como voltar pra casa depois...não iria...a dona Dolores talvez me desse almoço." Já no primeiro andar, voltava e desligava o gás, olhava a porta sendo trancada por sua chave, tentava guardar a imagem na memória, para não ter que voltar novamente.

As ruas eram claras e frias. A impressão de que todos que perpassam não são nada senão mudos. "Pra onde vai o playboy arrumado senão para o mesmo inferno que eu, se ele não for empregada de cozinha? Será que já fabricam empregados, mas por que o cabelo não está molhado e onde está a sacola? Para onde vai a atendente de telemarketing se ela cruza na direção oposta, se para lá não existem consultórios médicos, odontológicos, publicitários...telefones a se atender? Para onde vão todos esses mudos se deveriam estar indo para onde eu vou, na mesma lata, evitando o mesmo suor? Eles devem ser do futuro, onde eu ainda vou chegar." Continua o mesmo rumo de todos os dias úteis, quando havia pessoas úteis indo para seus lugares misteriosos e desconhecidos, "talvez seitas secretas, escritórios da máfia, escolas sem credenciamento." Aumentava as distancias e diminuia o cansaso, acelerava o passo e perdia a vontade de voltar, perdia a lembrança de como deixara o apartamento, do plano de regressar o mais rápido possível e voltar a dormir, guardava, como ontem, tudo na mesma inconsciencia. "Vou chegar atrasada, direi que tive um acidente, carros batem todo dia, pessoas batem todo dia, estrelas explodem todo dia. Se isso aqui batesse e eu não acho que morreria, iria andando ou esperaria por outra lata com menos sardinhas? Eu não preciso de atestado para acidentes, assaltos, brigas em família, mas talvez ela peça. Eu preciso me fazer um corte, um curativo, um hematoma... talvez precise fingir um choro. Com quem eu brigaria em casa, também justificaria os cortes, senão pelo menos em minha alma, esses eu não preciso fingir, mas esses eu não consigo chorar. Porra, como eu tô atrasada. Oi, tudo bom?" - Oi, cê vai chegar atrasada num vai? "vou sim, me deixa ir, porra agora eu tô mais atrasada... O acidente, não precisa de cortes, posso contar um história inteira, o motorista da frente estava no celular brigando com o empregado da firma porque ele esqueceu da última entrega de ontem a noite, mas eles vão dar um jeito no problema o empregado não vai ser demitido por isso só quando a Joelma esposa dele ficar grávida e ainda vai ser justa-causa o motorista já sabe até o que dizer mas eu não sei ele freia no sinal verde e a gente bate descem todos e eu tenho que esperar a próxima lata com menos sardinhas e por isso cheguei atrasada, pronto é isso" Ela entra na sala
"Bom dia"

- Bom dia

senta, sorri e se cala.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

A vida dos outros

O sujeito acorda de manhã e cutuca a esposa para fazer seu café. Passa uma ruidosa meia hora no banheiro sofrendo de, no mínimo, uns três males intestinais e escova os dentes com a mesma escova que tem há 3 anos porque trocar uma escova novinha é frescura de dentista. A parede está mofada. A mulher tem orgulho de sempre manter a casa arrumada e ele pega seu cordão dourado de cruxifixo na ponta, benze-se frente a imagem de nossa senhora sobre a rendinha na mesinha encostada no canto do quarto. Toma café em copo de geléia e come pão com manteiga vestindo uma bermuda jeans desbotada, o cordão já balança no peito cabeludo e ele segura a camisa xadrez de botão sobre a perna aberta que mantém fora da mesa. Hoje está de folga na empresa de taxi.
Todo dia na volta pra casa, o sujeito em questão passa em frente a uma locadora nova que abriram a alguns quarteirões de casa. O muro branco enfeitado de azul, coisa simples, pequena, coisa de bairro. Tem escrito bem grande um nome em inglês que ele não entende mas ele nunca usou o aparelho de DVD que comprou na liquidação do shopping no natal passado. Enquanto a esposa fala alguma coisa sobre a vida da cunhada ele resolve dar uma caminhada.
O estabelecimento é mal iluminado e pequeno, tem um ventilador numa cadeira de plástico, uns discos nas prateleiras da parede e um rapaz de 17 anos atrás de um balcão de vidro passando os olhos numa revista. O referido homem dá uma pisada pra dentro, enxuga o suor da testa com uma mão e dá a outra:
- E aí.
O rapaz aperta de leve a sua mão:
- E aí.

- Rapaz o que é que tem de filme bom aí?
- Aí depende do que o senhor acha bom.
- Filme bom! Uns filmes com uns homem escroto, sabe?
- Os filmes de ação estão ali.
- Esse filme aqui é bom, é?
- Eu não gostei, não, mas é porque eu não gosto desse tipo de filme.
- Pois me mostre aí uns filme que a gente gosta.
- Eu gosto daqueles ali.
- Uns filme que homem gosta.
- Aí depende do homem, não?
- Não, tem uns filme que todo homem gosta, né não?
- ..........ah.
- Me mostre aí um pornozão bem fela da puta.
- Um bem fela da puta. Aqui os filmes de mulher.
- Olha aí rapaz, as bixinha bem arrumadinha.
- Pois é.
- Aqui, esse aqui, ô negona do rabão.
-...
- Como é que a gente faz pra levar?
- Tem que ter o cadastro. - Que que precisa?
- Identidade, comprovante de endereço e renda.
- Dá pra liberar dessa renda, não?
- A dona não deixa...
- E cadê essa dona? - ... e ela não está aqui.
- Porra, meu irmão.
- Pois é.
- Eu vou ali em casa, se a mulher num tiver lá eu volto já.
- Está certo.