sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Daniel

Após esse post fecharei para balanço ouvindo Jorge, para almoço e para o lanche e para revisão de conceitos. Afagos e carinhos e nos vemos numa outra vida quando formos todos gatos.


Acabara de limpar o banheiro e sentava-se no vaso para usá-lo porque era o seu momento de refletir. O silencio ecoava no azulejo e ele imaginava que a sua cara deveria ser das mais patéticas, agora. Esboçou um sorriso. A primeira barata apareceu cínica, parecia que nem era uma barata, que o banheiro nem estava limpo. Veio num passinho rápido. De barata. E parou. "Era o mal comum, do tipo que sempre vai estar por lá. Não importa o quão limpa esteja sua vida, você vai ver baratas." Ela ficou o encarando, e ele ela. Tinha o costume desde criança de se perguntar se certas coisas aconteciam a todos e se todos se perguntavam as mesmas perguntas que ele. Uma vez se perguntou, inclusive, se todas as pessoas se preocupavam em dormir com a cabeça virada para o lado do céu onde ficava o paraíso. Já que, até então, acreditava que tanto deus quanto o diabo moravam no céu, um de um lado, outro do outro, dando-lhe a terrível tarefa de decidir a respeito do lado de cada um.
Já sabia agora que o diabo morava na terra, mais precisamente no apartamento debaixo. E tinha uma barata ao seu lado. Perguntava-se se todas as pessoas iriam apenas encarar, passiva e contemplativamente o pequeno inseto, como ele fazia agora.
A segunda barata chegara num passo mais apressado que a primeira, na parede a sua frente pouco acima da sua cabeça e disse à primeira. "Então, tu já estás aqui." e ela respondeu."absurdo é o teu espanto, dizes que cheguei precipitada quando tu chegaste como chega toda a experiência, tardiamente" e a segunda, então, falou."Nunca cessas de desperdiçar tuas palavras em momentos de banalidade, tua língua destravada já ecoa em outras línguas mais espertas, que tomam a autoria de tuas idéias." com surpresa a primeira barata pergunta."Que boca responde minhas palavras com minhas próprias idéias?" A segunda levanta a pata. "Mário Quintana" a primeira, indignada "crápula" as duas, então, "crápula!"
Não podia negar a surpresa, mas nunca fora de intrometer-se na conversa dos outros e tinha um gênio fraco. Esperou.
A terceira barata veio de surpresa, em meio a exaltação da discussão das outras duas, interrompendo tudo "Basta! Quando irão teus espíritos atingir a mesma exaustão que o meu frente às tuas atitudes?" As duas baratas viraram-se para a terceira e só se pode imaginar suas feições -Seria absurdo atribuí-las esse tipo aspecto- e disseram em coro "Porque não pões tua língua e o resto de teu imundo ser no lugar ao qual a mais tardia de nós pertence?" a terceira, atrevida. "Não me vejo assentada em cima de nenhuma outra que tenha vindo mais cedo". Em seqüência, a primeira, "Cale-se", a segunda "Cale-se", as três "Cale-se". Calaram-se. A essa altura, já tinha tentado todos os métodos conhecidos pra se sair de um sonho, sem sucesso algum, preocupava-lhe a idéia de ter dormido ali, sentado no vaso, iria acordar-se dolorido.
As baratas fizeram uma breve pausa e se entre olharam, ou ao menos pareceram fazê-lo, depois viraram-se para ele, para si novamente e começaram a correr em círculos, cada vez mais rápidas e mais rápidas e mais rápidas até que finalmente a luz do banheiro apagou-se, nada se via além do brilho azul fantasmagórico vindo das próprias baratas, que agora flutuavam no ar. "Você!" apontou uma delas, e outra completou "aqui nessa terra tens um destino, jovem rapaz". Por algum motivo, agora decidira que nada daquilo era um sonho. Outra barata continuou "Ouve nossas palavras com atenção, pois nosso encontro será breve e fugaz". Ele apenas arregalava os olhos. Uma delas apontou "Você!" e outra "Você está aqui nesse mundo com um propósito" e lá ficaram flutuando, por vezes chacoalhando, meio que involuntariamente, uma ou outra pata. Como que para fazer alguma coisa acontecer, ele gaguejou "Eu vou fazer alguma coisa impor.." e elas o interromperam bruscamente, apontando e gritando "Não!" e continuaram a flutuar caladas frente a ele. Tinha feito algo de errado, então decidiu tentar novamente "Irá minha existência representar algo de grandio..." "Não!" elas interromperam novamente. Ele ficou em silêncio e entortou a boca. "Irei matar algu... "Não!" "Então o quê?" "Você" uma delas começou, apontando, outra completou "Você irá viver uma vida..." e outra "...absolutamente dentro do comum" silêncio. Preocupado, ele tentou perguntar "Mas eu irei ter..." "Não!" "...Serei ri..." "Não!" "...Uma boa fami..." "Razoável" "Muitas dívi..." "Às vezes!" "Morrerei logo?" Elas se entre olharam e uma respondeu "68 anos contando de hoje" outra ainda continuou "e cinco meses" "é, e cinco meses" e ficaram lá flutuando. "Mais alguma dúvida?" perguntou uma delas finalmente. "Er...acho que não".
As baratas começaram a flutuar em círculos, cada vez mais rápido e mais rápido até que sumiram. Ele levantou e foi para a cama, afirmando para si apenas que estava com sono.

Daniel acordou mais cedo hoje, assim sem motivo. Em pleno domingo. Andou pela rua levando nas costas, dentro da mochila, a sensação de que o apocalipse havia tomado palco enquanto dormia. O que não pareceu nada necessariamente ruim, o sol era claro, mas ameno, as pessoas eram poucas e sonolentas, mas simpáticas. Decidiu que queria comprar pão e pediu dez, descobriu que a cafeteira hospeda baratas, mas não alarmou nenhum dos intelectuais. "descoberta a origem das estátuas de páscoa", "10 maneiras de qualquer coisa", a primeira página e as notícias de futebol. Era domingo, mas só porque o jornal parecia mais espesso. Não tinha nada a ver com a falta de compromisso nem com o simpático clima de apocalipse then. Na vontade de não voltar para casa acabou por voltar e ligar a TV. Era domingo, de fato. Passarão tempo e espaço. Segunda feira. mais tempo, mais espaço. Problemas, pessoas, um sonho aqui, outro ali, outro domingo. Mais alguns continuuns e dormidas e daqui a 68 anos e cinco meses Daniel morrerá, não faz diferença o porquê. Renderá algumas conversas, talvez até uns constragimentos. Agradece-se por não haver uma camisa com foto nem coisa do tipo. Ele tem uma conta bancária que será difícil de encerrar, mas não deixará dívidas. De promessas não cumpridas ficarão duas: uma bicicleta nova e um jantar à luz velas, a última bem antiga. E todo mundo dirá que o Daninho é a cara do pai.

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