Enquanto estou aqui esperando amanhecer, nunca deixo aquela rua. Nem vou deixar..Quando numa noite dessas eu estiver de passagem - ou de volta - e me encontrar. Quero ter um Band-aid pra me entregar e por no meu dedão. Algum conselho a receber.
Da minha janela eu não consigo ver agora. Mas sei que estou ali sob o poste solitário de luz amarelada, sentado na calçada, brincando com as pedras pequenas que já brotam do asfalto. E dessa noite, por mais que eu veja nascer o sol de Manchester ao Tibet, nunca sairei
segunda-feira, 17 de maio de 2010
terça-feira, 11 de maio de 2010
Pós-vida, pós-modernidade.
Então ela atendia o telefone. Vezes demais para que pudesse contar cada caso aos amigos. Um dia ele ligou. Ela atendeu como de praxe, repetindo o nome da representante de planos de saúde via telemarketing. 'droga, errei de novo'. Como ele continuasse na linha ela continuou o procedimento padrão e ofereceu seus serviços. 'Não querida, não era com você que eu queria falar'. Ela ganhava por comissão, o que já diz muita coisa. 'Não acho que vá precisar mais de plano de saúde, querida'. E ela estava naquele emprego só pelo dinheiro. 'não, meu amor, realmente não preciso mais desse tipo de serviço'. Eles também tinham um plano odontológico. 'Entendo, mas também não acho que precise mais conservar meus dentes'. O humor era uma forma efetiva de approach aos clientes, embora ela detestasse tentar ser engraçada como se fosse gorda. Ele respondeu como se não fosse uma piada, 'é, realmente não preciso mais dos meus dentes pra isso'. Ela não era boa no que fazia, fez-se um silêncio de certa forma cômico. 'O fato é que eu já estou morto, minha querida'. Ela ganhava por comissão e desligou.
Na semana seguinte, a mesma voz, mas ela não lembrou. 'droga...' e ela não entendeu e repetiu o protocolo. 'Eu errei...' a memória veio. 'Eu não estou brincando, querida.' E ela tinha sérios problemas com certas formas de tratamento.'Querida é só forma de dizer' Ela queria por um fim aquilo. Ganhava por comissão. 'Eu realmente não tinha a intenção'
Desligou.
A atendente não levantava para tomar café como faziam os colegas, não por não gostar de café, mas por outros dois motivos: não queria fazer parte e... tinha a coisa da comissão, junto com cada café eram bebidas umas três ligações, ela nunca fizera as contas. No horário de almoço ela desenhava qualquer bobagem nas costas dos documentos e também não era tão boa nisso como não o era em disfarçar o desprezo pelos seres de escritório. Não fazia diferença. Naquelas horas ela não tinha nome nem número para contato. Isso ia das oito da manhã às seis da noite. Na hora que visse o próprio reflexo na janela do ônibus de volta pra casa, lembraria que existe. E de como isso não parecia bom, existindo além dela todo o resto do mundo. Tinha um gato, mas gatos não se importam. O céu era púrpura e só, as músicas eram bonitas e não havia caos além disso, os postes seguiam apenas a dualidade de estarem acesos ou não e finalmente as antenas eram apenas antenas. O mundo era uma bola azul e isso não representava muito além de imagens de televisão. O morto no telefone não era, então, muito além de um morto no telefone.
No dia seguinte todas as folhas de papel foram trocadas por computadores pré-programados que pareciam também ganhar por comissão. Foi o pior almoço dos últimos tempos. Às três da tarde ela repetia o mesmo nome já perdia a conta de quantas vezes. 'Não é possível.' E hoje não era dos melhores dias, aqueles computadores.
- Escute, meu senhor, o senhor não tem o que fazer?
- Últimamente não.
Ela sentia que ele insistiria, e queria uma oportunidade.
- O que o senhor quer dizer com isso, senhor?
- Bom, desde que eu morri...
- Não me venha com essa.
- Não precisa me chamar de senhor.
- É a força do hábito, porque o senhor está me ligando?
- Não me chame de senhor.
- ...
- E não era minha intenção.
- Essa já é a terceira vez.
- Juro que queria falar com outra pessoa.
- E por que o se... você não disca outro número?
- Bom, daqui eu não tenho discado números.
Não era possível que ele continuasse.
- E onde o senhor está?
- Bom, quando se está vivo se chama de além, né? Mas agora eu não sei mais.
A colocação era boa, ela quase riu.
- E agora gente morta fala ao telefone?
- Eu também não sei como.
- Vai ver por isso o senhor liga pra cá sem querer, né.
- Não me chame de senhor.
- Desculpe.
E o diálogo com o morto levou dez cafés umas três comissões em seu ritmo, sete no ritmo das melhores atendentes. Ele tentava ligar para sua viúva, morrera com vinte e cinco anos ao cair da bicicleta com a cabeça na calçada enquanto passeava pelo parque. Ela ofereceu-se para dar o recado.
- Eu não sei exatamente o que quero dizer.
- Bom, eu também não.
- Pensarei em algo.
- Por que não diz simplesmente que a ama?
- Não seria verdade.
-...
- Pensarei em algo.
- Está bem.
- Melhor você ir, né?
- Acho que sim.
- Foi um prazer.
- Igualmente.
Fez-se um silêncio e desligaram.
Na semana seguinte, a mesma voz, mas ela não lembrou. 'droga...' e ela não entendeu e repetiu o protocolo. 'Eu errei...' a memória veio. 'Eu não estou brincando, querida.' E ela tinha sérios problemas com certas formas de tratamento.'Querida é só forma de dizer' Ela queria por um fim aquilo. Ganhava por comissão. 'Eu realmente não tinha a intenção'
Desligou.
A atendente não levantava para tomar café como faziam os colegas, não por não gostar de café, mas por outros dois motivos: não queria fazer parte e... tinha a coisa da comissão, junto com cada café eram bebidas umas três ligações, ela nunca fizera as contas. No horário de almoço ela desenhava qualquer bobagem nas costas dos documentos e também não era tão boa nisso como não o era em disfarçar o desprezo pelos seres de escritório. Não fazia diferença. Naquelas horas ela não tinha nome nem número para contato. Isso ia das oito da manhã às seis da noite. Na hora que visse o próprio reflexo na janela do ônibus de volta pra casa, lembraria que existe. E de como isso não parecia bom, existindo além dela todo o resto do mundo. Tinha um gato, mas gatos não se importam. O céu era púrpura e só, as músicas eram bonitas e não havia caos além disso, os postes seguiam apenas a dualidade de estarem acesos ou não e finalmente as antenas eram apenas antenas. O mundo era uma bola azul e isso não representava muito além de imagens de televisão. O morto no telefone não era, então, muito além de um morto no telefone.
No dia seguinte todas as folhas de papel foram trocadas por computadores pré-programados que pareciam também ganhar por comissão. Foi o pior almoço dos últimos tempos. Às três da tarde ela repetia o mesmo nome já perdia a conta de quantas vezes. 'Não é possível.' E hoje não era dos melhores dias, aqueles computadores.
- Escute, meu senhor, o senhor não tem o que fazer?
- Últimamente não.
Ela sentia que ele insistiria, e queria uma oportunidade.
- O que o senhor quer dizer com isso, senhor?
- Bom, desde que eu morri...
- Não me venha com essa.
- Não precisa me chamar de senhor.
- É a força do hábito, porque o senhor está me ligando?
- Não me chame de senhor.
- ...
- E não era minha intenção.
- Essa já é a terceira vez.
- Juro que queria falar com outra pessoa.
- E por que o se... você não disca outro número?
- Bom, daqui eu não tenho discado números.
Não era possível que ele continuasse.
- E onde o senhor está?
- Bom, quando se está vivo se chama de além, né? Mas agora eu não sei mais.
A colocação era boa, ela quase riu.
- E agora gente morta fala ao telefone?
- Eu também não sei como.
- Vai ver por isso o senhor liga pra cá sem querer, né.
- Não me chame de senhor.
- Desculpe.
E o diálogo com o morto levou dez cafés umas três comissões em seu ritmo, sete no ritmo das melhores atendentes. Ele tentava ligar para sua viúva, morrera com vinte e cinco anos ao cair da bicicleta com a cabeça na calçada enquanto passeava pelo parque. Ela ofereceu-se para dar o recado.
- Eu não sei exatamente o que quero dizer.
- Bom, eu também não.
- Pensarei em algo.
- Por que não diz simplesmente que a ama?
- Não seria verdade.
-...
- Pensarei em algo.
- Está bem.
- Melhor você ir, né?
- Acho que sim.
- Foi um prazer.
- Igualmente.
Fez-se um silêncio e desligaram.
sexta-feira, 7 de maio de 2010
Astrovaldo: desamparado, alienígena, alienado.
Eu desci aqui em um raio de sol.
E logo me fizeram alugar um apartamento. Foram abaixo todos os meus planos, quando aqui se chega, logo se esquece deles. Eu encontrei um homem, eu encontrei muitos deles. Aonde você vai? ele riu de mim. As coisas se passam, e aprendi que as pessoas também. Ontem arranjei um emprego. Eu não sei mais do que eu gosto, sou eclético, sou holístico, sou um cidadão do mundo. A minha impressão no início era de, na verdade, simplesmente não ser. Mas ter, eu tenho, isso sim, tenho muito. Se há algo que faço por aqui é ter. O que estou fazendo aqui? eu rio de você.
Quando cheguei, fui colando nos postes todos os segredos sobre o sentido de se estar aqui: no universo. No meu terceiro cartaz eu vi um anúncio de cartomante e fui em busca de respostas. Preciso de velas vermelhas ou de uma galinha preta ou de um rim de recém-nascido ou então de cinquenta reais. Precisei de um emprego e precisei de qualificação e precisei estudar. Gastei três anos e cento e sessenta reais e noventa centavos no supletivo. Ontem consegui um emprego e mês que vem receberei meus cinquenta reais. Pagarei a primeira parcela do supletivo e em quatro meses terei os cinquenta reais e minhas respostas.
Primeiro perguntarei se não seria mais fácil conseguir o rim.
Alguns feixes de sol podem me levar daqui para algum tempo a frente, mas perde-se tudo o que aconteceria nesse período da vida. Nesses quatro meses de trabalho nada me acontecerá, então me adianto. O seu Batista lá do escritório me pediu um feixe até ele terminar a obra na casa e o seu José me pediu feixes suficientes até ele ver suas filhas criadas, afinal, até lá ele só trabalharia e receberia seus cinquenta, nada demais a perder.
No quarto feixe ele morreu e suas filhas estão criadas.
Já tenho meus cinquenta, mas o preço da verdade aumentou. Se eu comprar um carro, junto tudo mais rápido. Melhor juntar para comprar um carro, então eu compro as respostas. Até lá será muito tempo mas eu serei um vencedor.
Tenho muitos feixes a pegar.
E logo me fizeram alugar um apartamento. Foram abaixo todos os meus planos, quando aqui se chega, logo se esquece deles. Eu encontrei um homem, eu encontrei muitos deles. Aonde você vai? ele riu de mim. As coisas se passam, e aprendi que as pessoas também. Ontem arranjei um emprego. Eu não sei mais do que eu gosto, sou eclético, sou holístico, sou um cidadão do mundo. A minha impressão no início era de, na verdade, simplesmente não ser. Mas ter, eu tenho, isso sim, tenho muito. Se há algo que faço por aqui é ter. O que estou fazendo aqui? eu rio de você.
Quando cheguei, fui colando nos postes todos os segredos sobre o sentido de se estar aqui: no universo. No meu terceiro cartaz eu vi um anúncio de cartomante e fui em busca de respostas. Preciso de velas vermelhas ou de uma galinha preta ou de um rim de recém-nascido ou então de cinquenta reais. Precisei de um emprego e precisei de qualificação e precisei estudar. Gastei três anos e cento e sessenta reais e noventa centavos no supletivo. Ontem consegui um emprego e mês que vem receberei meus cinquenta reais. Pagarei a primeira parcela do supletivo e em quatro meses terei os cinquenta reais e minhas respostas.
Primeiro perguntarei se não seria mais fácil conseguir o rim.
Alguns feixes de sol podem me levar daqui para algum tempo a frente, mas perde-se tudo o que aconteceria nesse período da vida. Nesses quatro meses de trabalho nada me acontecerá, então me adianto. O seu Batista lá do escritório me pediu um feixe até ele terminar a obra na casa e o seu José me pediu feixes suficientes até ele ver suas filhas criadas, afinal, até lá ele só trabalharia e receberia seus cinquenta, nada demais a perder.
No quarto feixe ele morreu e suas filhas estão criadas.
Já tenho meus cinquenta, mas o preço da verdade aumentou. Se eu comprar um carro, junto tudo mais rápido. Melhor juntar para comprar um carro, então eu compro as respostas. Até lá será muito tempo mas eu serei um vencedor.
Tenho muitos feixes a pegar.
Tunic (for aki)
Sonhando. Sonhando com a garota que acredito ser. Andando pelas ruas, encarando os negros, os velhos, executivos. Sonho com a imagem que tenho de mim mesma e quão impressionantemente comum ela pode parecer aos outros.
Sonhando. Sonhando sobre como eu deveria ser se tivesse feito todas as coisas certas desde que meus pais me trouxeram do hospital. Se não tivesse levado aquela queda, não tivesse estourado aquela espinha, não tivesse realizado aquela vingança. Sinto como se pudesse ignorar o mundo.
Mas quando me olho no espelho, sou menor de todas as formas.
'Venha com a gente', ele disse, 'cante com a gente.' E então eu abro meus olhos e eles me alimentam e por mais que eu não goste daqui, não há outro lugar para estar.'Beba' ele disse e eu bebi, de novo e de novo, 'dance' ele disse, e como se a música não acabasse, eu dancei. E são nesses dias eu tenho acordado como quem morreu na noite anterior. 'trabalhe', e eu trabalhei. 'coma', 'corra', 'compre', 'ame', 'inveje' e eu me abandonei - alô? oi? Tente desligar e ligar de novo. alô? Pois não. Vou lhe transferir para o outro setor. alô? sim? não, a Lara não está, não das 6 da manhã até as dezoito horas. Ela está abandonada.'Venha' ele diz, e eu vou. Percebo meus olhos abertos. Vou, canto, bebo e danço e morro todo dia.
Mas quando consigo acordar, eu sonho. Sou mais viva de todas as formas.
Como e atendo todas as ligações. Sinto como se desaparecesse. Espero na luz vermelha e sigo na luz verde, não por medo de morrer, mas porque é assim que funciona.
Corro e rabisco um horror nas costas de algum documento para poder passar por tudo isso e naquele dia faltaram papéis. Foi pesado demais. Grite, eu me disse e eu gritei. E quando percebi os meus olhos abertos, vi outros olhos de todas as formas. Eu corri, chorei e estraguei meu esmalte vermelho quando abri essas linhas nos meus braços. Eu sei que não importaria pra onde fosse o ônibus que eu pegasse. Eu apenas paguei a passagem e passei.
Sonhando. Sonhando sobre como eu deveria ser se tivesse feito todas as coisas certas desde que meus pais me trouxeram do hospital. Se não tivesse levado aquela queda, não tivesse estourado aquela espinha, não tivesse realizado aquela vingança. Sinto como se pudesse ignorar o mundo.
Mas quando me olho no espelho, sou menor de todas as formas.
'Venha com a gente', ele disse, 'cante com a gente.' E então eu abro meus olhos e eles me alimentam e por mais que eu não goste daqui, não há outro lugar para estar.'Beba' ele disse e eu bebi, de novo e de novo, 'dance' ele disse, e como se a música não acabasse, eu dancei. E são nesses dias eu tenho acordado como quem morreu na noite anterior. 'trabalhe', e eu trabalhei. 'coma', 'corra', 'compre', 'ame', 'inveje' e eu me abandonei - alô? oi? Tente desligar e ligar de novo. alô? Pois não. Vou lhe transferir para o outro setor. alô? sim? não, a Lara não está, não das 6 da manhã até as dezoito horas. Ela está abandonada.'Venha' ele diz, e eu vou. Percebo meus olhos abertos. Vou, canto, bebo e danço e morro todo dia.
Mas quando consigo acordar, eu sonho. Sou mais viva de todas as formas.
Como e atendo todas as ligações. Sinto como se desaparecesse. Espero na luz vermelha e sigo na luz verde, não por medo de morrer, mas porque é assim que funciona.
Corro e rabisco um horror nas costas de algum documento para poder passar por tudo isso e naquele dia faltaram papéis. Foi pesado demais. Grite, eu me disse e eu gritei. E quando percebi os meus olhos abertos, vi outros olhos de todas as formas. Eu corri, chorei e estraguei meu esmalte vermelho quando abri essas linhas nos meus braços. Eu sei que não importaria pra onde fosse o ônibus que eu pegasse. Eu apenas paguei a passagem e passei.
quarta-feira, 13 de janeiro de 2010
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
Hans
Hans era um zumbi alemão que vivia no centro da cidade. Haviam grandes telões nas paredes dos arranha céus, exibindo amostras nonsense de pesadelos vídeo- musicais, celebridades mortas e noticiários, sob um noturno céu multicolorido e movimentado, marcado por aquarelas permanentes em forma de fogos, penetrado por antenas iluminadas com neon, rasgado por espaço- naves, estrelas e anjos cadentes e orações via satélite. Ainda que misantropo, Hans não tinha consciência de sua própria condição. Ainda que Joana ainda não tivesse partido, já se sentia sozinho.
Não há muitos registros de relações harmoniozas entre meio-mortos e artificialmente vivos, mas os vizinhos dizem que Frank já era como que da família, as línguas más-soltas afirmam até que não só era membro integrante como necessário. Hans não trabalhava e Joana era zumbi de circo. Frank operava telemarketing.
Fazia pouco menos de um mês que se podia ver o encontro diário dos artistas do Mondo (I)real no galpão abandonado, havia pouco tempo que Joana encantara-se pelo percussionista da banda e decidira aprender acrobacias, malabares e receitas veganas. Por vezes, entre uma pirueta e outra, podia-se ver uma perna voando ou um olhos virados, mas todos eram conscientes, sorridentes, equilibrados. O vizinho do 512 sempre descia para oferecer suco, vestido com alguma lingerie, ainda que comportada.
A noite em que Joana foi embora foi dessas de céu muito preto e luz muito clara. A imagem de Hans sentado nas escadas segurando os rubros globos oculares nas mãos não era de difícil reprodução, rodeado de papéis de panfletos, jornais e embalagens de metanfetaminas, enquanto Frank subia e descia os lances numa aparente pane de sistema. Joana lá fora, guardava os malabares na Combi colorida, entre sorrisos, soluços e engasgos.
- Você realmente não quer vir?
- Mas como?
- Ele é só uma porra de uma lata, Hans.
- Fala baixo.
- Eu só quero que você saiba que isso aqui não é o fim, que nossos corações não batem, mas se encontram quando nos abraçamos.
- Se for pra falar essa merda, vai logo.
- Eu vou te mandar pensamentos felizes.
- Ai, caralho.
E assim ela se foi, deixou pra trás uma porta inteira do guarda-roupa ocupada de roupas e esperança. Nunca voltou. Mesmo depois que o movimento se acabou e a tenda criou mofo. Só chegaram postais.
Hans colocou os olhos de volta nas órbitas, tirou a cabeça de cima do pescoço e a manteve pressionada contra o peito por três dias até que finalmente decidiu subir ao seu apartamento.
A morte-e-vida de Hans não ia muito além das paredes do prédio, cuidava de sentir falta, manter a sobrevivência. O noticiário anunciara a substituição dos modelos beta o mais breve possível e desde então criou-se certo desconforto social com a inquietação de todos os X-114, Frank desenvolveu paranóia, depressão e um desolador quadro esquizofrênico. Tentou suicídio de diversas formas, desde a ingestão de líquidos fatais como limonada até o vazamento proposital de fluido. Consta que Hans fez o possível, que Frank duraria, que tudo daria o que deveria dar.
O laudo médico, mecânico e policial daquela noite despertou horror durante três minutos do noticiário. Foram encontradas as roupas de Joana jogadas ao chão, comentam que Hans vestia uma delas durante o maquinocídio e que Frank foi sexualmente violentado após sua morte. Essa manhã muitos robôs e zumbis saíram em passeata em prol do movimento de humanização das máquinas inteligentes.
Não há muitos registros de relações harmoniozas entre meio-mortos e artificialmente vivos, mas os vizinhos dizem que Frank já era como que da família, as línguas más-soltas afirmam até que não só era membro integrante como necessário. Hans não trabalhava e Joana era zumbi de circo. Frank operava telemarketing.
Fazia pouco menos de um mês que se podia ver o encontro diário dos artistas do Mondo (I)real no galpão abandonado, havia pouco tempo que Joana encantara-se pelo percussionista da banda e decidira aprender acrobacias, malabares e receitas veganas. Por vezes, entre uma pirueta e outra, podia-se ver uma perna voando ou um olhos virados, mas todos eram conscientes, sorridentes, equilibrados. O vizinho do 512 sempre descia para oferecer suco, vestido com alguma lingerie, ainda que comportada.
A noite em que Joana foi embora foi dessas de céu muito preto e luz muito clara. A imagem de Hans sentado nas escadas segurando os rubros globos oculares nas mãos não era de difícil reprodução, rodeado de papéis de panfletos, jornais e embalagens de metanfetaminas, enquanto Frank subia e descia os lances numa aparente pane de sistema. Joana lá fora, guardava os malabares na Combi colorida, entre sorrisos, soluços e engasgos.
- Você realmente não quer vir?
- Mas como?
- Ele é só uma porra de uma lata, Hans.
- Fala baixo.
- Eu só quero que você saiba que isso aqui não é o fim, que nossos corações não batem, mas se encontram quando nos abraçamos.
- Se for pra falar essa merda, vai logo.
- Eu vou te mandar pensamentos felizes.
- Ai, caralho.
E assim ela se foi, deixou pra trás uma porta inteira do guarda-roupa ocupada de roupas e esperança. Nunca voltou. Mesmo depois que o movimento se acabou e a tenda criou mofo. Só chegaram postais.
Hans colocou os olhos de volta nas órbitas, tirou a cabeça de cima do pescoço e a manteve pressionada contra o peito por três dias até que finalmente decidiu subir ao seu apartamento.
A morte-e-vida de Hans não ia muito além das paredes do prédio, cuidava de sentir falta, manter a sobrevivência. O noticiário anunciara a substituição dos modelos beta o mais breve possível e desde então criou-se certo desconforto social com a inquietação de todos os X-114, Frank desenvolveu paranóia, depressão e um desolador quadro esquizofrênico. Tentou suicídio de diversas formas, desde a ingestão de líquidos fatais como limonada até o vazamento proposital de fluido. Consta que Hans fez o possível, que Frank duraria, que tudo daria o que deveria dar.
O laudo médico, mecânico e policial daquela noite despertou horror durante três minutos do noticiário. Foram encontradas as roupas de Joana jogadas ao chão, comentam que Hans vestia uma delas durante o maquinocídio e que Frank foi sexualmente violentado após sua morte. Essa manhã muitos robôs e zumbis saíram em passeata em prol do movimento de humanização das máquinas inteligentes.
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