terça-feira, 11 de maio de 2010

Pós-vida, pós-modernidade.

Então ela atendia o telefone. Vezes demais para que pudesse contar cada caso aos amigos. Um dia ele ligou. Ela atendeu como de praxe, repetindo o nome da representante de planos de saúde via telemarketing. 'droga, errei de novo'. Como ele continuasse na linha ela continuou o procedimento padrão e ofereceu seus serviços. 'Não querida, não era com você que eu queria falar'. Ela ganhava por comissão, o que já diz muita coisa. 'Não acho que vá precisar mais de plano de saúde, querida'. E ela estava naquele emprego só pelo dinheiro. 'não, meu amor, realmente não preciso mais desse tipo de serviço'. Eles também tinham um plano odontológico. 'Entendo, mas também não acho que precise mais conservar meus dentes'. O humor era uma forma efetiva de approach aos clientes, embora ela detestasse tentar ser engraçada como se fosse gorda. Ele respondeu como se não fosse uma piada, 'é, realmente não preciso mais dos meus dentes pra isso'. Ela não era boa no que fazia, fez-se um silêncio de certa forma cômico. 'O fato é que eu já estou morto, minha querida'. Ela ganhava por comissão e desligou.

Na semana seguinte, a mesma voz, mas ela não lembrou. 'droga...' e ela não entendeu e repetiu o protocolo. 'Eu errei...' a memória veio. 'Eu não estou brincando, querida.' E ela tinha sérios problemas com certas formas de tratamento.'Querida é só forma de dizer' Ela queria por um fim aquilo. Ganhava por comissão. 'Eu realmente não tinha a intenção'
Desligou.

A atendente não levantava para tomar café como faziam os colegas, não por não gostar de café, mas por outros dois motivos: não queria fazer parte e... tinha a coisa da comissão, junto com cada café eram bebidas umas três ligações, ela nunca fizera as contas. No horário de almoço ela desenhava qualquer bobagem nas costas dos documentos e também não era tão boa nisso como não o era em disfarçar o desprezo pelos seres de escritório. Não fazia diferença. Naquelas horas ela não tinha nome nem número para contato. Isso ia das oito da manhã às seis da noite. Na hora que visse o próprio reflexo na janela do ônibus de volta pra casa, lembraria que existe. E de como isso não parecia bom, existindo além dela todo o resto do mundo. Tinha um gato, mas gatos não se importam. O céu era púrpura e só, as músicas eram bonitas e não havia caos além disso, os postes seguiam apenas a dualidade de estarem acesos ou não e finalmente as antenas eram apenas antenas. O mundo era uma bola azul e isso não representava muito além de imagens de televisão. O morto no telefone não era, então, muito além de um morto no telefone.

No dia seguinte todas as folhas de papel foram trocadas por computadores pré-programados que pareciam também ganhar por comissão. Foi o pior almoço dos últimos tempos. Às três da tarde ela repetia o mesmo nome já perdia a conta de quantas vezes. 'Não é possível.' E hoje não era dos melhores dias, aqueles computadores.
- Escute, meu senhor, o senhor não tem o que fazer?
- Últimamente não.
Ela sentia que ele insistiria, e queria uma oportunidade.
- O que o senhor quer dizer com isso, senhor?
- Bom, desde que eu morri...
- Não me venha com essa.
- Não precisa me chamar de senhor.
- É a força do hábito, porque o senhor está me ligando?
- Não me chame de senhor.
- ...
- E não era minha intenção.
- Essa já é a terceira vez.
- Juro que queria falar com outra pessoa.
- E por que o se... você não disca outro número?
- Bom, daqui eu não tenho discado números.
Não era possível que ele continuasse.
- E onde o senhor está?
- Bom, quando se está vivo se chama de além, né? Mas agora eu não sei mais.
A colocação era boa, ela quase riu.
- E agora gente morta fala ao telefone?
- Eu também não sei como.
- Vai ver por isso o senhor liga pra cá sem querer, né.
- Não me chame de senhor.
- Desculpe.

E o diálogo com o morto levou dez cafés umas três comissões em seu ritmo, sete no ritmo das melhores atendentes. Ele tentava ligar para sua viúva, morrera com vinte e cinco anos ao cair da bicicleta com a cabeça na calçada enquanto passeava pelo parque. Ela ofereceu-se para dar o recado.
- Eu não sei exatamente o que quero dizer.
- Bom, eu também não.
- Pensarei em algo.
- Por que não diz simplesmente que a ama?
- Não seria verdade.
-...
- Pensarei em algo.
- Está bem.
- Melhor você ir, né?
- Acho que sim.
- Foi um prazer.
- Igualmente.
Fez-se um silêncio e desligaram.

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