sexta-feira, 25 de junho de 2010

Fragilidades

Imaginou como seria brincar de esconde-esconde sozinha no apartamento. Foi assim que arranjou motivo para encolher-se naquele único canto do quarto que nunca teve motivo para ir. Só seu agora e deixou seu escrito na parede, em letra pequena, ilegível e não original: I was here, and only me. Assim, sem consciência da metafísica moderna, reafirmou, only me. E para manter sua palavra escrita, decidiu montar virgília eterna àquele ínfimo pedaço de parede, deixando-o apenas, e com muito temor e pesar, no dia do próprio funeral. Tratava-se de um fantasma moderno, para a eternidade escolhera uma camiseta branca com uma estampa do Velvet Underground, uma saia jeans, sandálias rasteiras e uma fita vermelha no cabelo preto. Só aparecia em fotografias de aniversário e sempre desligava o forno quando um bolo ia queimar, sempre sabotando qualquer projeto de pintura daquele seu ponto na parede, onde ela, e apenas ela havia estado. Sessenta e oito anos se passaram e orgulhosamente seu escrito constituiu uma pequena mancha ignorada no canto do quarto.Naquele dia, durante a estadia de um jovem escritor de cyber-contos vintage, a fantasma deparou-se com as palavras deixadas na tela de um computador:

"Eu posso dividir meu segredo com você se disser em qual das minhas mãos ele está.
Qual dessas duas mãos sempre tão cheias de dedos, que dedilham fios de cabelo e fios de navalha.
Que sangram sempre o mesmo sangue e tocam sempre os mesmos acordes.
O mesmo arpejo que resume a vida"

E ficou perdida por entre palavras e significados, segredos próprios e alheios, o absurdo, como se pode brincar assim com aquilo que podia haver de mais frágil e perigoso dentro de um coração? Por um instante, pode sentir-se tomar formas de revolta, angústia e indignação. Por não ter mais corpo, se esculpia de tudo o que sentia, tinha agora o desenho do abraço entre agonia e incerteza. Pela primeira vez em muito tempo, esqueceu-se do seu posto de guarda, seu lugar cultivado naquela existência. E se fosse tarde? Tropeçou pelo ar até o quarto e o jovem rapaz tocava sua mancha, tarde demais, nada a fazer, era o fim. Ele acariciou a parede e olhou ao redor e por segundos eternamente turvos, pareceu fitá-la. Levantou-se. O que faria? O que ele faria? E depois disso o que ela faria? O que fazer? O que esperar? Tintas, ele tinha tintas, ele iria pintar sua parede, seu espaço, sua lembrança, amarelo sobre seus sentimentos e tudo teria um fim, ela teria que descansar em paz afinal, já podia sentir-se afogar dentro da lata de sem cheiro e de secagem rápida, acabaria assim então.Com o pincel, o jovem escritor desenhou com cuidado um pequeno abrigo circular para a pequena mancha e suas miúdas letras, depois um círculo maior, ao redor de tudo isso. Boquiaberta, ela assistia, como quem assiste a própria morte (pela segunda vez). O círculo maior foi contornado com uma fina linha branca na parede verde, e preenchido de laranja, mantendo sempre a salvo a pequena mancha dentro de suas fronteiras arredondadas. Eram os requintes de crueldade. E com o pincel mais fino, o jovem escreveu com olhos concentrados ao redor do círculo menor:

...Been everywhere, but there.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Santa, santa, santa.

Logo de manhã o sol é uma imensa faixa clara, quente e agressiva através dos olhos e das lentes UVA e UVB, reflexos e vultos reluzentes de bocas e pernas e tênis e rodas e fios de cabelo e telefone, buracos, tropeços, monstros e outdoors amassados de lingeries. Pedaços de manhã pela avenida. Não é o que se vê, é o que se ouve nos motores dos ônibus e dos carros e no assar das peles e do asfalto na margem da avenida. Tanta, tanta, tanta, tanta, tanta gente e nenhuma voz humana. Se algo corta de repente seu ouvido antes que desmaie: Um celular, e tudo volta a mais barulhenta e angustiante normalidade da margem da vida urbana. Correu alguém, menina, all-stars, mochila adidas pesada e gasta, calça jeans colada e camiseta de farda colegial. Em seu quarto ela joga os livros como se livrasse de uma imensa pedra que quase racha o azulejo do apartamento, liga o ventilador e deita na cama para tornar-se o que há de mais culpado e invejado dentre as almas operadoras de telemarketing e representantes de vendas. Santificada, fecha os olhos e os ouvidos com um lençol, libertando-se de todo e qualquer mal, santa maria dessa manhã, a ti devemos a esperança de voltarmos para nossas famílias, sãos, salvos e exaustos. Façamos hoje uma oração antes que o sol e o motor derreta nossa fé e amemos essa imagem quando o ônibus nos levar dessa vida.

Vida de bolso

Quando saiu de casa tudo que queria era um cachorro quente, e a TV mandava nunca mais jantar. Não tinha desses dias que se passam em fotografias do pôr do sol e certamente não duraria mais de um mês ouvindo Tom, Jobim ou Zé.
Saiu de frente a um apartamento, um emprego, um filho, um casamento e num domingo, dessas horas tão mortais, foi se hospitalizar.

"...e então minha melhor amiga vem a ser a máquina de hemodiálise. E dentre tantas vidas que se lê, nem sei nem quando eu vou voltar, mas entre raios e estímulos tão vitais, eu peço um disco voador... e eu não desço mais."

Você

Você me viu passando e nada fez, você, essa vergonha e inatitude. Por causa de você ele voltou para casa e escreveu e no dia seguinte nada mais daquilo fazia nenhum sentido porque nada nunca faz. Você, a segunda pessoa do meu dia e da minha língua, minha realidade, que descende de tu e se perde entre eles. Tocou meus dedos por acidente naquele dia e nunca mais, mas aqui está. E é tarde demais. Você agora é outro, por isso sou outro e assim continuamos sob sucessivas transmutações como se nos tornássemos líquido e recipiente, barro quente e mão.

Entenda.

Você acordou naquele dia como acorda todos os dias mas o dia só começou algum tempo depois. Você olhou o espelho e viu ele, viu eu. Você vestiu-se de acordo e saiu. No caminho esbarrou comigo, vestido de você e isso foi apenas uma vez, pois meu eu e seu eu são raros de se ver. Eu ainda esbarraria com muitos de você. Depois de mim um primeiro ele também vestido de você, falando com a sua voz:
- Quem é você?

Quem é você afinal? Quem sou eu? Há muito tempo não me vejo e duvido se existo.

- Você sou eu...

Quem é ele? Ah, ele. Ele é tudo que há de pior e de mais belo, é tudo que quisermos que seja.

- Mas quando olho, o que vejo sou eu.

A verdadeira culpa

O eu-lírico levantou para beber água na cozinha
e ficou lá de papo com a Creuza
enquanto isso a caneta foi, e contou tudo.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Uma hora, uma madrugada.

Woooff. Está frio aqui.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Presente feito em casa

- Vai quebrar, vai quebrar.
quebrou.
- Eu avisei, não avisei?
Tinha que ser delicado e tinha que ter os dedos leves, levinhos, levíssimos.
Mas enquanto tentava entender que -íssimos não fazem parte da poética dos barbantes, ele errava, rasgava e tantava de novo.
- Olha só, cuidado... cuidado. Não!
Outro.
Enquanto isso se perdiam os panos, as linhas e os barbantes. Além do sentido de carinho da coisa