terça-feira, 30 de novembro de 2010

Um jazz

Eu escrevo sem o substrato de um tema
sem o trato poético
eu te utilizo
e se só a dor faz um poema
eu sigo assim
os dias passam
essas horas doem
por ti
eu mato, castro essa dor
como viva
até morrer
pelos caminhos
(coletivos)
espero morrer de calor
nessa cidade
o vento bate, magoa
a ferida tão concreta
quanto a realidade
sem sentido
algum
sem o mínimo
sem motivo
cento e uma razões pra eu te comprar
tua embalagem vale mais
em qualquer dito
qualquer momento
qualquer tristeza
esse lamento.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

R.I.P list

É aos trancos e barrancos que me deixo dizer qualquer coisa agora. Mas há uma lista de descanses-em-paz em enjoy the silence que me faz lembrar que para algumas pessoas, pessoas simplesmente morrem. Me faz pensar em todas essas almas mortas que, assim como o livro, rodeiam nossos quartos e nossos corpos, incompletas. Isso é tudo o que consigo no auge da minha fé maltratada, pra afastar a igualmente real possibilidade de todas aquelas pessoas estarem distribuídas em embalagens anti-impacto e plástico multi-uso. Porque tudo o que se desfaz aqui nesse mundo, vira polietileno.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Apenas corpos

Eu ainda estava amarrada na cama quando ele entrou, de certa forma foi constrangedor, uma falta de profissionalismo, não se pode cometer esse tipo de erro nesse ramo, quando se vende sonhos, eles não podem vir com as sobras que o outro cliente deixou no prato. Ele não queria comprar um sonho, queria o contrário, se é que isso existe. Mandou que eu vestisse a roupa, depois que a tirasse, tentei ser criativa, ele mandou que eu parasse. Apenas tirei a roupa e a coloquei. Três vezes, e na terceira já me perguntava porque ele não podia apenas foder e ir embora como todos os outros, não estava no clima para fetichistas naquela noite, mas era o trabalho então tentei encarnar o personagem. Não havia personagem, ele queria apenas que eu vestisse a roupa com a qual havia chegado e com a qual iria embora de manhã, depois a tirasse como se tivesse chegado em casa. Feito isso várias vezes, finalmente ele me comeu. Fiquei pensando como é bom não ser gueixa, prefiro ser puta mesmo.

Parágrafo desnecessário.

Devia saber que não estava pondo nada pra fora. Depois de levar umas três vidas, assim como quem leva o cachorro chato do vizinho pra passear, quando todas elas parecem uma peça tão perdida e sem graça que os mesmos atores tem agora papéis que se perguntam se realmente estiveram em outras cenas. Aquilo sim eu estava pondo pra fora. Você não. Nas últimas três manhãs acordei tentando te tirar da parte de trás da minha cabeça, que é onde você deu de morar agora. Essa presença de corpo ausente de você estraga tudo. Sinceramente eu tenho tentado rasgar meu inconsciente, te pegar pelo braço, te jogar na calçada e chutar teu estômago, te violentar e ir embora, mandar você nunca mais voltar. Fico me perguntando qual a necessidade disso tudo, se não deixei com você nenhum livro emprestado e os cds que eu te dei, nem faço mais questão de que voltem. Você devia ser agora só mais um personagem estranho, outro período, outro parágrafo já lido, já sentido. Você não faz sentido e minha cabeça um dia vai começar a sangrar enquanto meus olhos poderiam apenas um dia ter chorado, como nunca se fez, nem pelo fim que não houve nem pelo começo que eu não entendo. Há apenas um durante que teria durado, se você não fosse covarde, se eu tivesse mais maneirismos. Agora não temos mais nem tempo. Você merece um ponto final.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Todo dia.

Eu quero te comer mas não posso, eu mordo os teus pedaços em mim, porque te tenho tanto, toda hora todo momento sempre em todo clichê de amor eu tenho você. Eu nunca quero ir, na verdade eu sempre quero ir aí, quero te comer, quero te ter, quero ver você dentro de mim quando eu fechar os olhos, você já está lá. Aqui dentro é tão distante da minha mão. Ouço muitos discos diferentes ultimamente pra marcar que eles são teus, só teus, sem misturas e sem épocas, quando eu ouvir o Qualquer Coisa de novo eu nunca quero lembrar que passo as manhãs pulando de ônibus em ônibus, preenchendo formulários, aprendendo a querer aprender coisas que eu nunca nem achei que poderiam querer ser aprendidas por alguém, eu não quero lembrar que conheço a cada seis meses trios e duplas e legiões de pessoas com todo o potencial de serem bem mais interessantes que você e que eu, eu não quero lembrar que elas me julgam e eu nem sei porque me preocupo com isso, e se devo me preocupar. Eu só quero lembrar que estou com você todo dia o tempo todo a todo momento em todo clichê de amor eu tenho você. Eu quero te comer, quero te ver e te contar do meu dia, quero te ouvir e discordar e que isso não faça a mínima diferença, quero fazer amor e sexo, quero te matar pra te chorar depois, sentir a temperatura morena do teu sangue, eu quero morrer e em três dias voltar pra te dizer quer você pode, quero te dizer isso tudo mas não posso. Eu quero tudo e muito mais, mas não posso, quero essas palavras e outras, quero esses prazeres e todos, quero inclusive esses horrores e mais. E todo dia eu te digo tudo isso quando eu aperto tua perna, grito cada palavra disso subindo entre as multidões de carros da avenida treze de maio às sete horas quando deitado ao teu lado eu sorrio "eu te amo"

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

E a vida foi-se embora.

muito bem, somos gatos, somos, na verdade mais verdadeira, aquela que nem todo mundo consegue repetir, o que quisermos ser, gatos.

onde é que vai parar essa vida, meu deus? Com esses óculos escuros de madrugada. será que é vista cansada ou será que chorou de amor por sua vaquinha que voou e dessa vez não volta mais?

meia volta, volta e meia. tudo volta atrás. A vida passa e ultrapassa com o coração na mão, na garganta uma canção e um pedido e esmola. eu vou indo-me embora. muito embora ainda queira ficar, queira pedir, queira me acabar. queira.

a você que não entende absolutamente nada.
compartilhe do meu mal até o outro dia.
mas se entendeu.
não discuto mais.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Daniel

Após esse post fecharei para balanço ouvindo Jorge, para almoço e para o lanche e para revisão de conceitos. Afagos e carinhos e nos vemos numa outra vida quando formos todos gatos.


Acabara de limpar o banheiro e sentava-se no vaso para usá-lo porque era o seu momento de refletir. O silencio ecoava no azulejo e ele imaginava que a sua cara deveria ser das mais patéticas, agora. Esboçou um sorriso. A primeira barata apareceu cínica, parecia que nem era uma barata, que o banheiro nem estava limpo. Veio num passinho rápido. De barata. E parou. "Era o mal comum, do tipo que sempre vai estar por lá. Não importa o quão limpa esteja sua vida, você vai ver baratas." Ela ficou o encarando, e ele ela. Tinha o costume desde criança de se perguntar se certas coisas aconteciam a todos e se todos se perguntavam as mesmas perguntas que ele. Uma vez se perguntou, inclusive, se todas as pessoas se preocupavam em dormir com a cabeça virada para o lado do céu onde ficava o paraíso. Já que, até então, acreditava que tanto deus quanto o diabo moravam no céu, um de um lado, outro do outro, dando-lhe a terrível tarefa de decidir a respeito do lado de cada um.
Já sabia agora que o diabo morava na terra, mais precisamente no apartamento debaixo. E tinha uma barata ao seu lado. Perguntava-se se todas as pessoas iriam apenas encarar, passiva e contemplativamente o pequeno inseto, como ele fazia agora.
A segunda barata chegara num passo mais apressado que a primeira, na parede a sua frente pouco acima da sua cabeça e disse à primeira. "Então, tu já estás aqui." e ela respondeu."absurdo é o teu espanto, dizes que cheguei precipitada quando tu chegaste como chega toda a experiência, tardiamente" e a segunda, então, falou."Nunca cessas de desperdiçar tuas palavras em momentos de banalidade, tua língua destravada já ecoa em outras línguas mais espertas, que tomam a autoria de tuas idéias." com surpresa a primeira barata pergunta."Que boca responde minhas palavras com minhas próprias idéias?" A segunda levanta a pata. "Mário Quintana" a primeira, indignada "crápula" as duas, então, "crápula!"
Não podia negar a surpresa, mas nunca fora de intrometer-se na conversa dos outros e tinha um gênio fraco. Esperou.
A terceira barata veio de surpresa, em meio a exaltação da discussão das outras duas, interrompendo tudo "Basta! Quando irão teus espíritos atingir a mesma exaustão que o meu frente às tuas atitudes?" As duas baratas viraram-se para a terceira e só se pode imaginar suas feições -Seria absurdo atribuí-las esse tipo aspecto- e disseram em coro "Porque não pões tua língua e o resto de teu imundo ser no lugar ao qual a mais tardia de nós pertence?" a terceira, atrevida. "Não me vejo assentada em cima de nenhuma outra que tenha vindo mais cedo". Em seqüência, a primeira, "Cale-se", a segunda "Cale-se", as três "Cale-se". Calaram-se. A essa altura, já tinha tentado todos os métodos conhecidos pra se sair de um sonho, sem sucesso algum, preocupava-lhe a idéia de ter dormido ali, sentado no vaso, iria acordar-se dolorido.
As baratas fizeram uma breve pausa e se entre olharam, ou ao menos pareceram fazê-lo, depois viraram-se para ele, para si novamente e começaram a correr em círculos, cada vez mais rápidas e mais rápidas e mais rápidas até que finalmente a luz do banheiro apagou-se, nada se via além do brilho azul fantasmagórico vindo das próprias baratas, que agora flutuavam no ar. "Você!" apontou uma delas, e outra completou "aqui nessa terra tens um destino, jovem rapaz". Por algum motivo, agora decidira que nada daquilo era um sonho. Outra barata continuou "Ouve nossas palavras com atenção, pois nosso encontro será breve e fugaz". Ele apenas arregalava os olhos. Uma delas apontou "Você!" e outra "Você está aqui nesse mundo com um propósito" e lá ficaram flutuando, por vezes chacoalhando, meio que involuntariamente, uma ou outra pata. Como que para fazer alguma coisa acontecer, ele gaguejou "Eu vou fazer alguma coisa impor.." e elas o interromperam bruscamente, apontando e gritando "Não!" e continuaram a flutuar caladas frente a ele. Tinha feito algo de errado, então decidiu tentar novamente "Irá minha existência representar algo de grandio..." "Não!" elas interromperam novamente. Ele ficou em silêncio e entortou a boca. "Irei matar algu... "Não!" "Então o quê?" "Você" uma delas começou, apontando, outra completou "Você irá viver uma vida..." e outra "...absolutamente dentro do comum" silêncio. Preocupado, ele tentou perguntar "Mas eu irei ter..." "Não!" "...Serei ri..." "Não!" "...Uma boa fami..." "Razoável" "Muitas dívi..." "Às vezes!" "Morrerei logo?" Elas se entre olharam e uma respondeu "68 anos contando de hoje" outra ainda continuou "e cinco meses" "é, e cinco meses" e ficaram lá flutuando. "Mais alguma dúvida?" perguntou uma delas finalmente. "Er...acho que não".
As baratas começaram a flutuar em círculos, cada vez mais rápido e mais rápido até que sumiram. Ele levantou e foi para a cama, afirmando para si apenas que estava com sono.

Daniel acordou mais cedo hoje, assim sem motivo. Em pleno domingo. Andou pela rua levando nas costas, dentro da mochila, a sensação de que o apocalipse havia tomado palco enquanto dormia. O que não pareceu nada necessariamente ruim, o sol era claro, mas ameno, as pessoas eram poucas e sonolentas, mas simpáticas. Decidiu que queria comprar pão e pediu dez, descobriu que a cafeteira hospeda baratas, mas não alarmou nenhum dos intelectuais. "descoberta a origem das estátuas de páscoa", "10 maneiras de qualquer coisa", a primeira página e as notícias de futebol. Era domingo, mas só porque o jornal parecia mais espesso. Não tinha nada a ver com a falta de compromisso nem com o simpático clima de apocalipse then. Na vontade de não voltar para casa acabou por voltar e ligar a TV. Era domingo, de fato. Passarão tempo e espaço. Segunda feira. mais tempo, mais espaço. Problemas, pessoas, um sonho aqui, outro ali, outro domingo. Mais alguns continuuns e dormidas e daqui a 68 anos e cinco meses Daniel morrerá, não faz diferença o porquê. Renderá algumas conversas, talvez até uns constragimentos. Agradece-se por não haver uma camisa com foto nem coisa do tipo. Ele tem uma conta bancária que será difícil de encerrar, mas não deixará dívidas. De promessas não cumpridas ficarão duas: uma bicicleta nova e um jantar à luz velas, a última bem antiga. E todo mundo dirá que o Daninho é a cara do pai.